Três da tarde: tempestade.
O céu escuro, as calçadas escorrendo, guarda-chuvas abertos, pessoas correndo.
Chuva pra paulista virou sinônimo de alegria, mas as senhorinhas, amontoadas nas janelas, reclamavam dela só pra ter o que falar. Depois voltavam aos tititis de todo dia: o decote da vizinha, o namorado da empregada, o filho gay da enteada. Que pecado!
No carro, parado no trânsito, o executivo estava impaciente. Discutia ao celular e gritava sem parar "Você sabe quem eu sou?!?!" Parecia dizer "você sabe quem eu sol? O mundo gira ao meu redor!". O farol abriu, ele acelerou. A pressa imperava, o apreço implorava, mas ele parecia nunca chegar a lugar algum, sempre faltava. Fechou o ciclista que dobrava a esquina e seguiu em frente sem saber que andava em círculos.
No balcão da loja, uma menina envelhecida pelo desânimo. Olhava a todos com o desinteresse típico de alguém que odeia o próprio emprego. Não fazia a menor questão de ser cortês, mas não tratava mal. Tanto faz e coisa e tal.
Havia um nome em seu crachá, mas ela não tinha a menor identidade. Estava acostumada a não ter voz.
Na porta da faculdade, o calouro reclamava do calor, da falta de tempo e do prefeito. No caminho havia passado por um mendigo, mas aos seus olhos aquilo era uma barata. "Tão repugnante quanto", praguejava.
Indo pra aula, cruzou com a mulata do curso de exatas. Não perdeu a chance de lançar-lhe uma cantada que mais parecia uma ameaça. Ela ignorou. "Ingrata! Mal comida!".
O rapaz havia frequentado durante a vida toda os melhores colégios da cidade, que garantiam educação de qualidade. Falharam, apesar do ingresso à faculdade.
Num parquinho ali perto, as crianças brincavam na chuva. Riam alto, sem se preocupar com resfriados. Faziam do quintal um mundo, cujas cores e formas eram escolhidas por elas. Escolhiam brincar lá fora em vez da solidão de dentro, com tanta mãe da rua, pique esconde e polícia e ladrão, para isso não havia tempo.
Já na estante, estão os reis, gênios e heróis, empoeirados e incontestáveis. Às vezes acho que essa é a única razão pela qual são invencíveis e não consigo entender porque toda obra prima se faz filha única no que há de ruim: seu ego é cego, do tipo de egocentrismo se espalha pelas zonas norte, sul, leste, oeste e chega até o ABC. Puta merda, é quase uma megalópole.
Eu procuro entender porque tentam a todo tempo nos dividir entre ordinários e especiais quando somos sempre os dois.