domingo, 23 de novembro de 2014

Hoje é domingo, pede carinho

Era manhã de novembro. As casas já estavam enfeitadas para o natal, o jornal estava no escaninho e, na sala, Caetano Veloso cantava qualquer coisa. Havia também quem cantasse a novidade e o fruto proibido.
Eu confundia as letras, trocava céu por sol e me espantava por me identificar tanto com os quadrinhos no fim da Ilustrada. Eu geralmente não os entendia. Colei todos no meu caderno de memórias.
Me despedi do livro que havia terminado de ler no dia anterior com um abraço e, embora soubesse que aquele era um gesto um tanto quanto... peculiar, só queria agradecer por ter me tirado da minha realidade quando o dia-a-dia fez cara feia. Dá-lhe, Nelson Motta!
Naquela manhã, dei-me por satisfeita simplesmente por não mais querer parafrasear uns tais versinhos do Leminski*.
Decidi que me encontraria com a Paula, aquela que amava demais, entendia meus olhares e ria e chorava como poucas. Também queria dançar com a Luiza até os pés doerem e o suor escorrer pela testa, mas, antes de mais nada, diria ao Marcos que o amava e que a saudade era demais.
Olhei o relógio e me assustei ao ver que não era mais manhã. Descalcei os chinelos e corri pra'quela tarde que prometia ser uma delícia e que, como esse textinho, não queria saber de moral no final.

*eram eles:
"lendas vindas
das terras lindas
de orientes findos

me façam feliz
feito esta vida não faz"

sábado, 22 de novembro de 2014

Cousas de ovni

Das cousas que nos abrem os olhos: o mau humor do despertador, o "já!" do pique esconde e a descoberta de que não é amor.
Das cousas que nos enchem a boca: os palavrões quando finda o horário político, a pipoca durante os trailers e a voz quando há tempo para nós.
As cousas, as cousas... Jamais se pode dizer "oi" a elas. Revelam-se foscas diante do olhar.
E quando as cousas obrigam-nos a deixar de ser maniqueístas?
Trazem em massa a escuridão, mas dão o privilégio de ver a lua.
A noite é escura pra que a imaginação não precise de olhos.
Acredita em mim, filho, porque eu posso não conhecer todas as cousas, todas as causas e todas as quedas, mas não basta ter uma vida imensa para ter uma vida inteira.

sábado, 1 de novembro de 2014

Antes de pular da janela

Bom, eu realmente tenho algumas considerações a fazer.
Na verdade, não são só algumas. Eu poderia até escrever um livro, se as editoras não fossem tão difíceis.
De qualquer forma, soa mais romântico ser numa carta.
Vocês podem publicar depois, como aconteceu com Kafka.
Mas, por favor, não usem fotos feias minhas nas capas dos livros como fizeram com ele. Principalmente naquela da edição de bolso de A Metamorfose que vende em qualquer banca.
Por Deus, não! Consigo imaginar Franz franzindo a testa e dizendo "que porra é essa?"
Tá certo, tá certo, é brincadeira. Podem usar uma ilustração do Zé Otávio. Esse cara é incrível. Queria colar os desenhos que ele fez do David Bowie e da Marilyn Monroe na minha cara pra nunca mais me chatear ao olhar pro espelho.
Tudo bem, este pode ser o prólogo. Podem colocar aquele poema do Roberto Reis no fim. Aquele que fala da sombra das árvores alheias. Eu tinha pensado na música Here comes the sun, dos Beatles. Mas achei que talvez soasse muito como aquelas homenagens pra artistas no Domingão do Faustão. Deus me livre.
Então, é. Eu sucumbi à queda livre e sei que as pessoas me acham fraca e que Deus não me ama mais. Mas, poxa, Senhor, assim tão rápido? Quer dizer que não era amor? Era tequila? Que isso, que absurdo!
Acontece que o vento no rosto sempre foi minha sensação preferida no mundo todinho e não tem jeito melhor de, não só estar perto disso, mas fazer parte de verdade.
Talvez num simulador da NASA, mas, gente, quem aqui está falando de flores de plástico?
Eu acho sim que fui uma pessoa forte. Que sobrevivi ao bug do milênio, à gripe suína, ao ano de 2012 e, até o presente momento, ao ebola.
Sobrevivi até quando bati a testa na quina da porta e minha avó colocou pó de café achando "que era drama de criança". Gente do céu, sobrevivi a um show do Calypso e à reeleição do Alckmin. Eu sou mesmo uma super heroína. Em todos os sentidos que a palavra oferece. Que delícia, que tragédia.
Mas sobreviver pode ser tão vazio... Ora, ela sobreviveu a um acidente de carro. Perdeu a filha e o marido, vive a base de remédios e já não canta de manhã cedo. Mas sobreviveu, então tudo está uma maravilha.
Ele, por outro lado, sobreviveu a guerra do Vietnam. Se viu matando gente inocente no reflexo do olhar dessas pessoas, perdeu muitos amigos e tem pesadelos todas as noites. Sabe como o silêncio do escuro pode muito bem virar explosão.
Mas e vocês, hein? Sobrevivem todos os dias ao cotidiano. Sobrevivem trabalhando em empregos que detestam, sobrevivem vendo um pouquinho de esperança ir embora ao final de cada dia, sobrevivem a corações partidos, às tempestades em Santa Catarina, à falta d'água em São Paulo e ao preconceito com o nordeste.
Vocês sobrevivem sem dar ouvidos às notícias que anunciam que, mais uma vez, um garoto abriu fogo contra os outros alunos em um colégio nos Estados Unidos.
Sobrevivem aos traumas, aos dramas da TV, aos maços de cigarros diários e à bebedeira dos fins de semana.
Sobrevivem sem saber que seus filhos sofrem bullying (podem inserir aqui os nomes reais desse dito cujo: gordofobia, homofobia, racismo, intolerância religiosa, machismo e todas as outras formas de aversão e violência ao que as pessoas simplesmente são).
Vocês sobrevivem calados e são, na maior parte do tempo, infelizes. Talvez não escancaradamente tristes, porém infelizes.
Mas, gente, eu não sou Nelson Mandela ou Madre Teresa. Gostaria, mas não sou.
Eu sou supérflua em um mundo transbordando sete bilhões de pessoas.
Eu tenho nojo por me permitir estar presa à tantas futilidades e ser tão mesquinha, por mais que tente provar o contrário.
Também não sou Luiz Carlos Prestes nem Gabriella Jude.
Não tenho causa e não me sacrifiquei por nada.
Gente, eu me sinto sozinha o tempo inteiro e eu sempre tive mais do que mereci.
Eu fui à lugares maravilhosos, vi o mundo do alto, sempre estive cercada por pessoas bonitas ou interessantes e frequentei as melhores escolas. Eu tive amor e foi imensamente verdadeiro pra mim. Eu tive festas de aniversário, ataques de riso, muito carinho dos meus pais e uma casa muito bem decorada e confortável.
O que é que me falta? Por que nunca me basta? Nunca é suficiente!
Piora saber que não melhora com o tempo.
Crises de choro e desespero. Não tem porque. Não tem por quem.
Os vizinhos já ouviram os gritos mais de uma vez, mas continuam a ser simpáticos enquanto esperamos o elevador.
Os amigos sabem que alguma coisa não está bem, que nunca esteve, na verdade, mas também sabem que é mais eficiente me levar pra dançar.
E antes que me perguntem, digo em alto e bom tom: valeu muito a pena. Eu vi o sol nascer, comi neve, escalei pedras, li poesias que me fizeram sair correndo pela casa, dancei por noites inteiras, aprendi a tocar violão, estudei em uma escola Waldorf, vi algumas das minhas bandas preferidas ao vivo, andei de bicicleta na rua sem cair e, acima de tudo, eu amei.
Amei muito. Amei todo mundo. Amei, amei, amei.
Não tenho mais o que dizer. Só peço para que ninguém guarde mágoas nem coisas que não são usadas.
Joguem tudo fora, ou entreguem pra quem precisa. Basta de acúmulo e basta de culpa!

Com amor, como sempre, Jami.