sábado, 27 de dezembro de 2014

Já que as pegadas fazem cócegas

Quem se ajoelha, recorre à força maior e ali se estira sentindo o peso que o corpo (tão pouco!) traz, talvez entenda as minhas meias palavras.
Madrugada de dezembro: o calor escorre nas costas, o rio transborda às portas e os pés continuam percorrendo o caminho já trilhado por todo o mundo. O trote não é suficiente e os tropeços escancaram: rua sem saída e rio assoreado. 
Dos teatros ganhei Vivaldi e as quatro estações, dos botecos ganhei cartola e todas as emoções, mas, pensando nas coisas como são, nos acontecimentos que batem à porta sem ser convidados e em como não há a possibilidade de simplesmente bater a porta na face do recém chegado, as línguas gritam "inusitado!" enquanto os crentes pregam: premeditado. Indago o enfado e rimo calado sem nunca saber o que faço.
O que vem pode ser recebido como perfuração ou como abraço. O encontro jamais é calejado. 
Entre a roda da fortuna e a roleta russa a diferença é o modo de olhar. Se aquieta quem entende ou tem algo a perder. Quem deixa entrar o alvoroço, enfrenta. Peita e diz que pode ou chora e, enfim, perde.
Viver é veludo.
Gritaram meu nome, mas eu nunca soube que era eu.
O tempo inteiro eu era todos.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Elena: Seu reflexo

Éramos três.
Éramos mais.
Éramos todas, mas éramos tortas.
Éramos, sem mais nem menos.
Por isso, quando me batem à porta perguntando se atravessamos eras, conto da janela, de como ela não tem trancas e é desnuda de formalidades. Também conto do pão de queijo e do café preto. Aproveito, puxo uma cadeira, pego o jornal e conto dos escândalos do metrô e da Petrobrás, dos filmes em cartaz... mas você já não pode ouvir... não conseguiu ver nada disso e, embora as fantasias façam crer que você e o seu misto de esplendor e simplicidade pudessem prever isso tudo, ou quem sabe criar coisa muito melhor, não existe agora. Não tem instante. Isso dói.
Mas éramos três. Não a deixaríamos na estante: eis o veredicto.
O asfalto queimava os pés que dançavam, as luzes ardiam os olhos, que então fechavam, mas as mãos continuavam tateando, procuravam o contorno do seu rosto. Os lábios ainda queriam o seu gosto, o suor das bochechas de dias cansados e os diálogos...
Não sou pedra.
E o coração? Pesava 300 gramas e carregou o mundo inteiro. Me pôs nos ombros, me deu carinho... depois me pediu pra descer e ir brincar. Disse que depois me veria em vários outros sonhos.
Acontece que éramos três e havia a promessa de nunca mais olhar no espelho. Assim, os contornos e traços antigos foram retorcidos, distorcidos e remoldados. Nos deram rugas e olhos fundos "como os de passarinho", alguém mais tarde diria, e nós nos encarregamos de nos afogar. Em cachaça e águas límpidas. Em palcos, arenas, livros e poesia.
Os pés, ainda assim, dançavam.
Te amo, Elena. Sinto saudade todo dia.
Com amor, como sempre...