terça-feira, 31 de março de 2015

O terno e o eterno

Saiu do escritório como a respiração de alguém que passou um minuto e meio debaixo d'água. Era sexta feira. "Aleluia! Graças a Deus!" Proferia sem a menor intenção de ir à igreja.
Afrouxou a gravata como quem tira a corda da forca do pescoço e até a música genérica do elevador o instigava a dançar. Chegou ao saguão sorridente como nunca. "Até que enfim, hein, seu Manoel? Te vejo na segunda" disse segundos antes de se lembrar que o funcionário só ia embora às oito horas. Por breves instantes sentiu pena, mas olhou o relógio e já eram cinco e meia: melhor correr. Da calçada, ligou pro Luiz pra decidir pra onde iriam. Pensava em ir prum barzinho na Vila Madalena ou na rua Augusta, o Enfarta ou o Nola, quem sabe? Mas Luiz falou de uma festa no Morumbi e o convenceu a ir. Desligou.
Entrou numa bardaria pra tomar uma gelada, antes de mais nada. No balcão, falavam de futebol com a importância que se dá ao fim do mundo. A rivalidade fazia as vozes se exaltarem, mas as palavras logo se transformavam em gargalhadas. Era estranho pra alguém que havia passado tanto tempo se dedicando inteiramente a uma tese de mestrado, um relacionamento frustrado ("totalmente esquecido", dizia a si mesmo) e a uma promoção no trabalho. Coisas essas que ele julgava mais importantes que o brasileirão, mesmo assim, não se sentia melhor que os caras do balcão. "Foda-se o Corinthians. O São Paulo e o Palmeiras também" pensou enquanto pagava o olho da cara pela breja. Ah, esses bairros nobres...
Na calçada outra vez, caminhou devagar, como nunca fazia, respirou fundo e olhou em volta. Em plena Consolação e no horário de pico, tudo acontecia ao mesmo tempo. E as pessoas de traços, sotaques, etnias e histórias tão diferentes, pareciam iguais em meio à correria. Aliás, era assim que se sentia. Igual, não uma iguaria. 
Ainda andando devagar, recebia alguns esbarrões e ofensas que não o faziam acelerar. Olhava tudo. A mulata bonita que alisava e prendia o cabelo de coroa, trazia a mesma sensação de um passarinho numa gaiola, o moreno, que ele acreditava ser nordestino, tinha traços cansados, mas um sorriso simpático... havia tudo quanto é tipo de rosto. Perdia-se, mas tentou deixar pra lá. Ainda tinha que buscar o carro no estacionamento pra ir à festa do Morumbi. Era sexta feira. Um dia bom. Um dia pelo qual ele havia esperado.
Foi então, na altura da Paulista, em frente à passagem literária, que ele a viu na direção contrária, enquanto atravessava a rua: Daniella. O amor inacabado e "não tão esquecido assim" sobressaia-se em meio a multidão. Não que fosse extremamente bonita ou chamativa, mas era ela. No meio da faixa, não sabia o que fazer, queria gritar seu nome, mas em meio a tanto ruído, aquilo parecia silêncio. Parou quando estava chegando ao outro lado da rua. O coração estava acelerado e ele sorria, embora sentisse uma pontada de desespero por talvez não conseguir chegar a ela. Decidiu voltar, se a vida era mesmo a arte do encontro, tinha reencontrado sua artista favorita. Não podia ser em vão.
Atravessou a rua outra vez, correndo e sentindo o vento no rosto. Ainda via Daniella, embora ela já estivesse de costas. E, então, quando sentiu-se perto o suficiente pra chamar seu nome, veio um ruído forte demais e, depois, só silêncio. O farol abriu e um motoboy atrasado acelerou.
Morreu na hora, sem chegar aonde queria. Dizer que morreu na praia seria bondade. Morreu no meio da rua, "na contra-mão, atrapalhando o tráfego".
Talvez os pensamentos e sentimentos ruins tenham ido embora com o sangue que escorria da cabeça.
Não buscou o carro no estacionamento, não foi à festa, não viu seu Manoel na segunda feira.
De terno e gravata estirado ali no chão, parecia pronto para o caixão. O rosto estava um tanto quanto desfigurado, mas é sempre tudo igual, não faz mal.
Daniella, sabe-se Deus se era mesmo ela, não o viu. Com o barulho do atropelamento, muita gente correu até lá para ver o que tinha acontecido. Ela, que não queria saber de tragédia, aproveitou que a calçada esvaziou e andou mais rápido em direção a nenhum lugar importante.

terça-feira, 24 de março de 2015

Entre chorinhos e choradeiras: eu quero me amar e quero me armar

Mas o céu está azul de novo, amor. A noite acabou e eu não sonhei. Não sonhei, mas escolho viver.
Como quem escolhe não mais pensar que as nuvens são de algodão. É, é água, aquela mesma que chove e depois escorre no chão (como os versos da música já disseram). Isso é mágico e triste.
Esses dias mesmo a gente falou de melancolia, de solidão em lugares cheios de gente.
Te vejo em quadros do Monet e nos pixos de São Paulo. Você já deveria saber que toda forma de arte tem um quê de clandestina, a indignação que não cala, a beleza que transcende o olhar.
Te ouço naqueles chorinhos que arrepiam os pelos do braço e aceleram o coração. Na voz, sempre uma viagem pr'outro mundo, da Ella Fitzgerald ou nos vocais esganiçados do Garotos Podres. Sussurro, silêncio.
As mãos tremulam, os olhos transbordam e o chão é gelado.
Culpo-me. A ninguém mais.
Existe essa maldita procura dos olhos por uma visão que traga paz, traga luz... e a luz também cega.
Os beijos! Queria que fossem inúmeros, mas da boca pingam mentiras que prometem cessar como um viciado que diz que é a última vez.
E, então, escuto o choro desesperado de quem sente um vazio no peito e uma facada na garganta. No meio dessa histeria, convenço-me de que é isso o que sou: histérica, incapaz e triste.
E quando vejo alguém ir embora de cabeça erguida, talvez incerto do futuro, mas confiante no que é, sinto inveja. Sinto inveja porque olho pra trás mais vezes do que posso contar (não tenho culpa, sou de humanas) sem entender o passado e sem gostar do presente.
E, em um lapso de pensamentos, espanto-me: o céu continua azul, mas aqui dentro é tempestade. É o dilúvio, eu juro! E fico torcendo pra essa "arca de não é" naufragar e eu não ter que me obrigar a sorrir e ser agradável em uma outra manhã. Agradável é o caralho! Que é que a gente tá fazendo aqui? Nos enganando, é claro. Fingindo que somos refinados e comemos pernas de rã, mas é só engolição de sapo.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Metafórico, não mórbido

Que é que eu, pequena e mãos trêmulas, tenho a dizer da morte?
Ela, que vem de repente ou se faz insistente, pode ser chamada de falta de sorte?
Quisera.
É o epílogo de todos os livros da biblioteca. Dos que encantaram a ponto de ser doloroso deixar aquele universo literário, aos que, como nos capítulos anteriores, ninguém se interessou em ler.
É a carta de despejo que não se quer receber. Ou quer, vai saber...
Tem morte no envelhecer do corpo, tem morte no abandono de ideais (mesmo os irreais nunca são irrelevantes), tem morte no medo do escuro, tem morte pra europeus e plebeus.
Tem eu.
Tem vida, muita. Tem gênero, classe, filo... tem filas! Filas de espera pra transplante de órgãos e fila de espera no drive thru do McDonalds.
Mas esperamos pela morte?
Lenine diz que a vida é tão rara e os jornais dizem que a vida é bem cara, mas a vida tem de ser mais, a vida tem de ter o mal, pra que na vida vital seja o que canta e encanta. O samba é filho da dor. O samba tem toda a cor.
E somos pretos. Pretos, pardos, brancos, amarelos e mais todas as cores que o arco íris tem. Isso é quase como estar no céu, não é?
Mas nós, ao contrário do deuses,
somos meros mortais. Mortais porque é certo (ou errado, eu já não sei) que a morte vem. Convenientemente se esquece que dentro de todo Deus, tem eu.
E eu, pequena e mãos trêmulas, convenço-me de que a vida e a morte são pedaços de nós. De fácil corte e grande porte. 

quinta-feira, 5 de março de 2015

Para quando não precisares mais de malas

Quando de manhã fizer frio e pisar descalço for desconfortável, quando o suor for de um e não dois, engole seco. Arde como cachaça, como ralado em joelho de criança, mas passa.
Cantarola aquela letra dos Beatles ou o seu mantra hindu favorito. Faz isso como quem não crê em casta e não tem classe nem casa.
E, então, nos dias em que a lua surgir cheia e avermelhada, estufa o peito, respira aliviado e dá graças aos seus e aos céus.
Os movimentos de translação e rotação continuam, mas, pra você, só vale andar em círculos se for pra dar a volta ao mundo. Uma nova rota que sempre pende pra Rosa dos ventos.
Deixa pra trás as cordialidades de toda a corja e vá em direção às cordilheiras. 
É tanto conceito, tanto preceito, tanto enfeite... Deixa também o supérfluo! A memória tem que ser mais do que um penacho no chapéu, já que quem é passageiro não vive só de platéia. "Você está vivo, esse é o seu espetáculo"
Com amor, como sempre.