sexta-feira, 28 de março de 2014

Luana

Luana era uma menina de classe média alta e dentes perfeitos.
Gostava de passear com seu cachorro e pintar as unhas.
Luana já não faz o que gosta nem o que desgosta.
Luana está morta e aqueles que vêm se despedir da menina de coração quente, beijam seu rosto gelado.
Pobre Luana! Seus restos mortais têm o semblante tranquilo, mas sabemos que aquelas bochechas maquiadas para parecerem rosadas jamais serão novamente banhadas por lágrimas salgadas.
Pobre Luana! Em seu velório não estava nem metade das pessoas confirmadas no evento do Facebook (nem precisava de nome na lista!).
Atribuem à ela verbos no passado e perguntam se o corpo será cremado ou enterrado.
Pobre Luana! É tudo o que é agora: Um corpo.
Justo ela, que gostaria de ser julgada por seu caráter e não por seu corpo definido por horas de academia...
Justo ela, que desejava à todas inimigas vida longa: Morreu.
Aos pequenos, foi dito que Luana estava em um lugar melhor.
Bernardo, o primo caçula, perguntou se ela tinha ido para a Disney.
Os pais tentaram contornar a situação e disseram que Luana havia ido para o céu, mas Bernardo disse que o avião que leva até Miami também passa pelo céu, ou seja, dá tudo na mesma.
Luana, estendida ali com seu vestido mais bonito e o cabelo arrumado, estava como as flores que a envolviam: Bonita e morta.
E não é terna a ilusão de que ela será eterna.

sábado, 15 de março de 2014

Água da madrugada (e eu, que ainda te amo)

Boa noite, olhinhos!
Hoje foi um dia peculiar.
Acordei resmungando e arrastando os pés.
"Por que isso tudo outra vez, meu Deus?"
Aí, eu andei a cidade inteira. Inteira.
Passei a tarde toda esperando pelo inesperado e olhando pro céu esporadicamente, só pra ver se não tinha nenhuma resposta nas nuvens.
Mas, agora à noite, o breu se desenhou em estrelas e, aqui perto do chão, tinha gente que dizia que me amava e eu, que fingia acreditava só porque sim.
E eu ri e cantei desafinado.
E eu me prometi que me faria feliz.
Porque eu gosto de poesia e ela implora pela rima.
Eu já não imploro por nada. Nem pela chuva ou pelo toque.
Não peço que me levem pra casa mais cedo ou que passem a noite comigo.
Dispenso sobrenome e finjo me esquecer do passado.
Mesmo que me sinta sozinha por instantes insanos no meio da noite, nessa cama que é grande demais pra um só e que era ninho de quem só queria voar de asas dadas.
Então tá,
se cuida.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Menina que anda

Um dia desses, num ponto de ônibus próximo à Esalq, um senhor me disse sorrindo:
"Acho incrível esse seu hábito de escrever, menina. Aliás, hábito não, né? Arte. Porque no instante em que você transforma toda a confusão à que vocês jovens são submetidos em palavras, meras letrinhas e garranchos, você as eterniza.
Na verdade, acho que vocês mesmos se submetem à essa loucura, viu? É o encanto de ser jovem. Poder mergulhar em piscina que não dá pé e conhecer à todos os mundos pedindo carona em cada estrada.
É por isso que eu te digo, menina, que tenho 78 anos e sou jovem. Tenho dores nos joelhos e uma filha de 36 anos que me pede para ter juízo e sossegar, mas sou jovem como pouca gente já foi.
Essas palavras que você estava rabiscando em seu bloquinho permanecerão na eternidade. Mesmo que você tente alterá-las ou descartá-las, buscando o dia em que possam ser classificadas como 'corretas'. Esse dia não há de chegar.
Veja bem, menina, não deixe a naturalidade te escapar por entre os dedos.
Talvez as pessoas não se lembrem do teu nome no futuro, mas que importância isso tem, afinal?
Os anos podem consumir seu rostinho liso e risonho, o excesso pode tentar te tomar energia, mas nada te privará daquilo que você não compreende e te faz feliz, senão você mesma."

Foi aí que o ônibus chegou e eu entrei, esperando que o jovem senhor fizesse o mesmo. Assim, eu poderia fazer perguntas. Mas, pela janela, pude ver que ele tinha se virado e estava caminhando devagar em outra direção. Talvez eu não precisasse de respostas, afinal.
Olhando para os chicletes colados na poltrona à minha frente, fiquei pensando em como eu não seria capaz de eternizar só aquilo de que gosto e em quantas coisas ruins já rondam o "para sempre".
Então, olhei para o meu bloquinho e para o que eu havia escrito. Era sobre você.
Sim, sim. Sobre você. Acho que eu nem preciso te chamar por seu nome, porque é sempre você. Mesmo quando são os outros, mesmo quando sou eu, mesmo quando não é ou não há ninguém, estou sempre tentando transformar em você. Tudo em vão, Você é nome próprio.
O meu desespero de correr por aí fingindo ser alguém que não é de ninguém fica no presente, mas a certeza de que o mundo jamais será grande demais para os passos nossos pode viajar para o tempo que quiser pelo tempo que quiser

segunda-feira, 3 de março de 2014

Cabana imunda

Estava passeando por Embu das Artes hoje, até que me deparei com esse mendigo.
A princípio achei a cena engraçada, porque eu também tinha esse costume de brincar de cabaninha quando era criança.
Era meu jeito de fugir da realidade, ou criar a minha própria. Meu pedacinho de terra sem lei, onde o que eu quisesse que existisse, existia. Sem mais delongas.
Não importava se essa minha fortaleza era feita de lençóis e o que mais eu encontrasse pela frente. Era o lugar mais fantástico e seguro do mundo.
Estava lembrando disso tudo, toda nostálgica, até que me dei conta de que não é uma brincadeira para ele. É a sua única opção e, ao contrário de mim, ele não está fugindo da realidade. Aquele mendigo tem mais contato com ela do que qualquer um de nós.
Aquele mendigo, que, depois de me ver ali, olhando pra ele, se escondeu com as mãos, pode dizer, com todas as letras, o quão feia é a realidade quando não maquiada. Como ela mostra os dentes e morde. Como ela se apropria de nós, como ela se transforma em verme.
Então, me perguntei, finalmente: Qual é a diferença entre nós dois? É o berço? A falta de terço? Ou é o contexto?
Meu Deus! falamos o mesmo idioma, mas não a mesma língua!
Meu Deus, meu Deus, meu Deus! Ou será a falta do Senhor?
Podia ser eu!
Uma criança passou correndo ali por perto e eu pude ouvir sua mãe gritando "Sai daí que é sujo, Rafael! Olha o mindingo (sic) nojento!"
Então, cheguei a conclusão de que suja é aquela mulher, que ignorava o filho insuportável berrando por atenção.
Suja sou eu, que me deixo atormentar e, mesmo assim, não tenho a capacidade de fazer a menor diferença.
Sujo é qualquer um que se transforme em parasita, que transforme um homem em mendigo.