domingo, 25 de maio de 2014

Jamile

Desnortear-me é simples.
Basta pedir para que eu responda à pergunta "quem sou eu?"
Em três tempos o riso cala e a facilidade de devolver palavras é substituída pelo ato de dar ombros.
"Não sei. Tenho medo de descobrir."
Tenho medo de ser e tenho medo do ser. 
Vivo, intenso, pulsante. Correndo em busca das palavras certas, mas assustado com os pensamentos podres e indignos que se infiltram na melhor pose, do melhor ângulo, do que finge ser imagem.
Eu sou o pavor de ser declamada em público e o desejo pelas lágrimas de emoção e os aplausos do final.
Sou só Sol, mesmo quando me faço minguante. Crua a lua tua. Só não quero órbita. Me deixe cambalear como o bêbado da esquina que você ignora. Me deixe flutuar como a bailarina de pés feios que você paga pra ver.
Me deixe em paz, mesmo que o silêncio seja tormento. 
Porque eu sou o ímpeto e a mania de explicação.
Agora vem aqui e me abraça forte, com as duas mãos e todo o sentimento do mundo.
Eu sou o A que falta no começo do mar.
E é isso, eu soul. No inglês é alma e no português, sem l, vira nada.
Nada em que a gente nada, mergulha, se afoga e sai voando. 
Eu nunca quis fazer sentido, eu só quero fazer sentir.
Amém (com acento ou sem)

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Em nome do pai

Não te dei meu sobrenome nem me interessei por tuas primeiras palavras.
Por que pensas, então, que me importam as tuas ideias amadurecidas? Ideias que ainda hão de espatifar no chão e cortar-lhe fundo...
Veja bem, garoto, a última vez que tive notícias tuas foi em teu parto.
Eu não estava lá, é vero, mas me disseram que foi um parto difícil. Que teus pés saíram primeiro e tua cabeça insistiu em ficar. Não querias vir ao mundo, moleque. Assim teria melhor sido.
Não te digo isso para machucar, apenas espero que entendas (e, se fores capaz de assim fazê-lo, serás uma espécie rara nesta vida) que não és um fruto do amor. Até porque nunca conheci esse sujeito (inclusive acredito que ele seja invenção desses comunistas malditos!).
Nem ao menos me atrevo a chamar-te de fruto. Um fruto traz algum prazer, não? Tem sabor. És, para mim, uma folha, entre tantas outras, numa árvore qualquer. Uma folha que, mais cedo ou mais tarde, cairá e se perderá em qualquer lugar do chão.
O chão, menino, acostuma-te em ali estar.
Deus me livre que tenhas a minha cara! Não quero um reflexo do que ninguém quer ver.
No fim do dia, não há valor ou ilusão que me impeça de deixar os copos vazios.
No fim de tudo, não há valor ou ilusão que me salve do naufrágio.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Legado

Se eu morrer amanhã, não deixem que me enterrem, pelo amor de Deus.
Mandem me cremar.
Eu sei que parece estranha a ideia de ter o corpo em chamas, mas é justo com quem teve uma vida cheia de "calores do momento".
Me cremem. Depois, joguem minhas cinzas em qualquer lugar em que haja vento forte. Me deixem ser a sutileza e a delicadeza que nunca tive em vida. Me deixem voar pros lugares que eu nunca conheci.
Se eu morrer amanhã, não deixem que minha mãe se desespere. Peçam para o meu pai parar de chorar.
Se eu morrer amanhã e não tiver feito nada que valha a pena perdurar por séculos e séculos, me deixem morrer como alguém que aceitou ser esquecido e espera que, com o esquecimento, venha também o perdão.
Não aquele perdão divino, iluminado e maravilhoso do coração mais leve que a pena. Falo do perdão desses seres mundanos que eu tanto amei e odiei. Das feridas que eu abri, das feridas que eu tentei sanar e de toda gota de sangue ou lágrima que se fez presente.
Se vocês, seres mundanos que poderão então me esquecer, forem capazes de me perdoar, independentemente de quais foram os fatos, está feito o meu legado.
Se eu morrer amanhã, não sintam saudades. A saudade me remete à aquilo que poderia ter sido e não foi. Algo mal resolvido. Mas, se eu morrer amanhã, todo o tempo vivido foi o bastante.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Quiabo

Há quem sinta necessidade de despejar seu lixo sobre os outros, o ataque como uma função de defesa nessa vingança que busca o prazer no sangue escorrido e seco, há mais tempo do que consigo lembrar.
Há quem se refugie no silêncio, mesmo que depois esse teto desabe. Não se enxerga o tremor de maneira estática.
 E há também quem ria em situações indevidas, por puro medo de não saber como lidar. O toque, o encontro, o temor...
Sem essa busca por certo ou errado, todos têm a sorte e o poder de simplesmente ser, existir.
Sorte essa que há quem transforme em azar, mas esse alguém tem a possibilidade do "há".
Vivo cercada de possibilidades. Fazer algo novo e começar outra vez, olhar pro céu distraída e pisar na merda, andar na garupa na contramão, viajar pra longe e ter medo de voltar, andar no escuro de mãos dadas, mudar o mundo com palavras, cansar de esperar o elevador e ir pelas escadas, fazer rimas toscas sem nem perceber e me jogar no chão sem precisar de porquê.
Se é frustração, se é euforia, se é cansaço... Isso eu deixo ao acaso! Quero apenas o ser.
Isso me basta.
Quiabo.
(Daquele jeito sussurrado pra você entender errado).