quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O incrível caso do desaparecimento de ninguém

Pela manhã, quando pediu que eu a levasse para casa, já havia sucumbido ao desencanto.
E a quem se pode culpar, não é mesmo?
Lembrei-me, então, da quantidade de ideias que tomavam horas de conversa e não davam dois dedos de verdade e das vezes em que implorei silenciosamente para ser surpreendido, mas me contentava com esperanças de uma próxima vez.
Pensei em todas as vezes em que tentei traduzir todo aquele emaranhado de sentimentos, que me parecia até bonito, em versos e acordes. Nas vezes em que eu a procurava no dia a dia e nas capas de revista. Nunca houve resposta, nunca houve reação.
De qualquer forma, não quis atribuir a culpa ao seu rosto.
De volta ao recinto que eu deveria chamar de lar, encontrei meu pai sentado na beira da cama com as mãos no rosto.
Ele me viu chegar, tirou os óculos e se levantou, me olhando com olhos suplicantes.
Observei as rugas fincadas em seu rosto e as olheiras que o sono escasso lhe proporcionara.
Senti pena, mas, por um breve momento, também senti raiva.
Diante disso tudo, não pude deixar de me sentir pequeno. E mísero.
Meu pai falava sem parar, mas eu só conseguia pensar no carpete daquele quarto. Era tão feio! E, embora fosse rigorosamente limpo todos os dias, sempre tinha a aparência suja.
Lembro-me do escândalo que minha mãe deu quando pisei nele com os tênis banhados a lama.
Voltei à realidade quando meu pai começou a chamar meu nome e perguntar se eu faria o que ele havia proposto. Minha mãe estava ao seu lado com as mãos recostadas na bochecha. Não saberia dizer se ela estava cansada ou com medo da resposta. Talvez os dois.
Eu, mesmo sem ter ouvido uma palavra sequer, sabia que um sapato pequeno demais não serviria. E senti muito, mas tudo o que eu pude dizer coube em três letras:
Não.
Desci as escadas tão rápido que nem me vi sair. Também não me vi voltar, nem com o passar dos anos.
E nunca mais me encontrei. Ninguém o fez.
As pessoas sentiam pena e até se preocupavam, mas, no fundo, davam graças a Deus.
Eu também.
Deve ter havido um dia em que comecei a sumir, ou talvez tenha sido brusco e de uma hora pra outra, mas já não me via em mim mesmo há mais tempo do que seria capaz de contar.
Morri.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

A vida é vice

A vida é vice
e se você se vise agora...

Se vista,
invista,
leia na revista
e aproveite a vista.

Pode pagar com Visa,
mas tem que ser à vista.

Vinde pastorinhos
e vende o que puder

é vintage
é a vontade
tem vantagens
e condições viáveis

Não viaja,
você já não tem vinte
usa viagra
toma um valium
é tudo válido
mas não vacila

Vertigem
invalidez
velhice involuntária
velório.

Um vitalício quase lá.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Se tivesse cheiro, seria de baunilha

Ô, preta!
Deixa eu te contar, vem aqui...
Eu tava vendo umas fotos e me deu uma saudade daquelas que apertam.
Eu sinto falta de andar por aí fantasiada e acreditar nas minhas fantasias todas.
Eu morro de saudade dos bailes de carnaval, de jogar confete e chorar (por cinco segundos) com a espuma no olho.
De sempre querer ser ladrão no polícia e ladrão, do esconde esconde, de correr por aí e me achar capaz de tudo. Sinto saudade de quando eu era algo pra se ter orgulho. De quando quem estava ao meu redor era sempre só sorrisos. Das tardes e das quedas de bicicleta, do conforto do sofá e do cartoon network, da lambança do sorvete, do heroísmo dos meus pais, do mundo como um lugar cheio de cor
Eu me fazia feliz porque não havia outra possibilidade pra mim.
Era só ser feliz, Diniz. Nada mais, nada de mais.
E agora, quando me pego entre o abismo da janela e o conforto e o sufoco do meu quarto, me pergunto, aonde é que eu fui parar?

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A idade na cidade

Pés, anéis e senhores bacharéis
pressa sem apreço
nomes sem qualquer fisionomia
a vida ausente de filosofia
e tanta gente carente de endereço

Gritarias de muitos decibéis.
Durante o dia a cidade treme,
cai a noite e a gigante teme
Chegam e-mails e navios negreiros
e os beija-flores sobrevoam o lixo
sem entender os lixeiros em greve
e as promessas que dizem "em breve"

Passam janeiros e fevereiros
o subúrbio invade o nicho
morrem bombeiros e senadores
tocam os telefones
trocam os telefones
e minha terra já não tem palmeiras